Tradução por Paulo Santos
Se nos colocarmos junto ao muro do Convento de San Paio de Altealtares e entre as duas Quintanas, Quintana dos Mortos e Quintana dos Vivos, surge-nos a fachada este da Catedral, e a Porta Santa, com a particularidade, que somente desta localização, ainda que com dificuldade, se pode visualizar, junto da cúpula, uma cruz grega, que no passado, marcou o ponto de finalização da peregrinação jacobeia.
Originalmente, esta cruz, encontrava-se nas imediações da entrada norte da Catedral românica, d
esignada por Porta do Paraíso, localização de chegada e entrada tradicional dos peregrinos do Caminho Francês, onde podiam assear-se na fonte mirabilis do Séc. XII (atualmente situada no claustro catedralicio) e deixar as suas velhas roupas na Cruz dos Farrapos, surgindo o seu nome devido aos trapos que os peregrinos ali depositavam, como ritual tradicional de finalização da peregrinação a Santiago de Compostela, em que num ato de celebração e higiénico, queimavam as suas velhas roupas aos pés da mencionada cruz.
No Séc. XVII, um incêndio provocou a substituição da portada românica norte pela atual do Séc. XVIII, iniciada com estilo barroco por Lucas Ferro Caveiro e finalizada em estilo neoclássico de acordo com a diretrizes de Ventura Rodríguez. A cruz foi transferida para o telhado da catedral, onde ainda se encontra e pode
ser visitada, situada no passeio, sobre a abóboda da abside mais próxima do cruzeiro. Da cor azul-turquesa, sujeita a tantos séculos de intempéries, com a altura
de 2 metros, possuí uns braços em forma de trapézio, formados por lâminas de ferro e cobre, confluindo pelo seu lado mais pequeno num círculo, e incrustada num bloco de pedra em forma de cordeiro, símbolo de sacrifício.
A sua base apresenta uma construção, em pedra, de um forno incinerador, onde os peregrinos continuaram a tradição de queimar as vestes que tinham usado durante a peregrinação, como renovação e purificação, significado de renúncia da sua vida anterior e início de uma nova vida. A pedra ainda apresenta vestígios de calcinação pelo uso frequente, com registos do Séc. XVI, mas como ritual muito anterior, documentado que o Cabido Catedralicio proporcionava nova roupa aos peregrinos. Algumas lendas medievais afirmavam que não passar pelo buraco que existe na base da cruz, estaria em pecado mortal, muito idêntico com outras lendas galegas relativas á pedra furada.
Nem sempre a roupa era queimada, quando era proveniente de peregrinos nobres, o vestuário era de boa qualidade e reutilizável, permanecendo no pilão ou nuns ferros que existem pela parte exterior do gradeamento das janelas da cúpula, e leiloado posteriormente. Datado do Ano Santo 1490, existem documentos nos arquivos da Catedral que dos leilões resultou a quantia de 51.000 maravedis (moeda da época).
Mas em outros casos, quando as roupas estavam muito deterioradas, resultado de longa peregrinação com escassa higiene e impregnada de suores, chuvas e sujidades, então o mais correto era a incineração, e nada melhor que o fazer nessa estrutura quadrangular de cantaria em granito, reduzindo o imprestável e maltratado vestuário em cinzas que finalmente a chuva acabava por diluir e eliminar por um escoamento existente no fundo do mesmo, em que a altura da Catedral resultava na localização ideal.
Quando os peregrinos chegavam a Santiago, após a sua longa peregrinação, o primeiro ato que realizavam era cumprimentar e render honras ao Apóstolo no altar maior através do ritual do abraço, dando graças por ter conseguido chegar, e a seguir, dirigiam-se ao telhado da Catedral, protegido por umas balaustradas, até a Cruz dos Farrapos, onde realizavam o ritual da queima e substituição da roupa, e deste modo davam por concluída a romagem.
Como sugere José María Máiz Togores, a cruz era peça imprescindível na história do Caminho de Santiago como coluna que suportava os farrapos ou remendos, fossem físicos ou morais, dos peregrinos que chegavam a Compostela extenuados de uma esgotadora viagem, dando amparo às suas almas, escutando os seus lamentos e atestando a mudança da esforçada penitência na alegria e júbilo do perdão.
Testemunha fiel durante séculos da conversão que experimentaram muitíssimas almas, a outrora cativante e emblemática Cruz dos Farrapos ficou esquecida nos telhados da Catedral com o abandono deste ritual. Com sentida nostalgia, Lambas Carvajal recorda a tradição perdida e adverte ao peregrino que não vá em ilusões “pois quando chegas ali esmorecido, ninguém te dará roupa nova para trocar pela velha que trazes, porque hoje a essa cruz esquecida ninguém dedica amparo”.
Recuperando parte de seu perdido valor, hoje pode-se visitar a Cruz dos Farrapos, ainda que a maioria das vezes só para ser observada pela curiosidade humana e turística dos visitantes que realizam a visita guiada ao Palácio de Gelmirez e o trifório catedralicio por onde há acesso direto aos telhados da Catedral, que nos permite uma visão única da Catedral e de Compostela, e que já era recomendada no século XII no Códice Calixtino.